quinta-feira

Comer é meditar


Entre tantos fatos difíceis e estressantes de lidar neste dia, devo dizer que meu alento foi um maravilhoso almoço tipicamente indiano que me fez refletir sobre esse prazer da degustação. Apaixonada pela culinária do mundo, amo sushi, comida mexicana, alguma coisa da italiana e da francesa e, claro, a comida da minha terra. Mas tenho que admitir que nenhuma comida me provoca tantas percepções sensoriais como a indiana. São tantos sabores que se combinam que a gente se concentra em perceber um a um. Senti o estresse e a pressa me abandonarem naqueles 40 minutos para que eu tivesse tempo de deliciar cada detalhe daquele almoço, como se comida fosse música. Aliás, nesse restaurante, come-se ouvindo uma bela e tranquilizante música indiana, como se a sonoridade e tudo mais naquele ambiente tivesse a intenção de preparar o espírito para receber o alimento. Talvez o cristianismo tenha emprestado da cultura hindu o preceito que ensina que a comida deve servir de alimento para o corpo, como também para a alma.
A cultura indiana é mesmo muito fascinante e inspiradora. Comer na Índia envolve muitos saberes, não apenas sabores. Diz-se de uma cultura tão complexa de elementos e estética, quanto simples em sua filosofia de vida, onde todas as ações, como o simples ato de comer,  tem conexão com o jeito de ser e estar no mundo, que por sua vez resultará em um efeito. Ação e reação. Lei de causa e efeito.
Não conheço profundamente a cultura indiana, mas sei que respirar, meditar, procurar praticar uma moral do bem consigo, com o outro e com o seu ambiente, a força do pensamento, tem efeito cinequanon naquilo que somos e no mundo que vivemos. Dessa forma, o mesmo mundo, com as mesmas dificuldades, poderá ser concebido e "digerido" com peso e de formas diferentes por pessoas, de acordo com sua experiência nesse mundo. Por exemplo, na Índia, busca-se a paz espiritual até para o ato de comer.
E eu comi boa parte do tempo de olhos fechados... e não dizem que nos melhores momentos de prazer fechamos os olhos para sentí-lo melhor? Não é assim quando queremos ouvir uma música em seus mínimos detalhes, percebendo cada um dos instrumentos e tessituras  do arranjo? Não é assim quando fazemos amor e cerramos os olhos para chegar ao êxtase e assim, sentir e ver o outro melhor? Não é assim também quando ao fazermos uma oração, fechamos os olhos afim de atingir o nível mais alto de nossa meditação? Fechei os olhos para encontrar a "paz" que precisava naquele momento de degustação. Fechei os olhos para agradecer em prece aquela refeição tão saborosa, a qual não seria exagero nenhum dizer que é de se comer rezando e da qual muitos dentre nós jamais terão chances de experimentá-la. Alguns por falta de oportunidade. Outros, por falta de sensibilidade.
Fechei os olhos porque eram muitas as sensações daquela comida, que incitavam não apenas meu paladar e o olfato, mas outras instâncias de mim. Aquela comida me deixou feliz e me levou para perto de quem eu amo, com quem eu gostaria de compartilhar aquele momento e aqueles sabores. Pessoas que eu sabia que como eu estavam merecendo um tempo e um prato assim. E então, não seria isso que chamam de "meditar"?
Outro dia assisti uma peça que dizia que meditar não era tão somente ficar concentrado, respirando, com a mente vazia, mas se entregar por inteiro e verdadeiramente, sem dispersão a qualquer coisa que nos faça bem e que faça o bem. Aí, entendi porque tudo naquela comida e naquele ambiente me fazia ficar tão concentrada no momento de comer.  Com certeza nada é sem intencionalidade, porque sinto que naqueles quarenta minutos, eu só meditei enquanto comia, porque assim me entreguei inteira.
Primeiro veio o suco de manga com gengibre, que eu jamais suspeitei combinação tão perfeita. Em seguida a salada, temperada com azeite, limão e gersal (mistura de gergelim com sal marinho). Depois o prato principal: pakora recheada (berinjela suculenta, recheada com queijo ao molho de tomate); arroz integral com mostarda e gergelim, quiche de ricota e dahl de grão-de-bico com abóbora e manjericão (espécie de consomê). De sobremesa, um quadradinho pequenino, mas suficiente para adoçar a vida de uma deliciosa torta de "banana celestial" com canela e açúcar mascavo. Não era muito doce, porque assim como na vida, doce em demasia enjôa. Toda aquela comida tinha uma medida filosófica balanceada e suficiente para uma alimentação equilibrada e que me induzia a uma metáfora análoga à própria vida.
Para finalizar, já em estado de êxtase, no lugar do café, tomei o chai, famoso chá com leite e diversas iguarias. Simplesmente, dos deuses! Comi e bebi em paz e harmonia comigo. Um ato de generosidade comigo naquele dia tão conturbado. Algo que não posso esperar que outros o façam por mim.
Saí do restaurante com corpo e mente alimentados. Aquela comida me incitou pensamentos positivos. Lá fora, uma cidade e uma vida queriam me devorar. É preciso saber respirar, permitir-se parar um instante no tempo, que não para jamais por si só. É preciso saber degustar o tempo para que ele não nos engula... Uma boa receita para se precaver dos dissabores.
Comer realmente pode ser uma experiência perceptiva, reflexiva e filosófica tão rica quanto outras experiências sensoriais.

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